Eu nasci no meio do século passado, quando as famílias tinham estruturas rígidas e quase imutáveis. Nasci na época da solidez da sociedade. Tudo era feito para durar para sempre. Desde as panelas, até os matrimônios. Todos se orgulhavam de possuir geladeiras que tinham a mesma idade que seus casamentos e ainda seguiam funcionando. As geladeiras e os casamentos, supostamente.
A família em que fui criada, na Paraíba, nas décadas de 50/60, deixou de ser modelo há muito tempo. À época, era comum que fossem grandes – com pai, mãe, irmãos, avós, tias e tios solteiros, primos, empregados; todos morando numa mesma casa, num arranjo interessante. Havia também os membros temporários, as visitas que se demoravam meses e ao sair já eram quase parentes. A vizinhança, as escolas e outras famílias eram uma espécie de anexo familiar sempre disposto a ajudar e interferir, sendo solicitado ou não. Aquela era a época das famílias ampliadas onde prevalecia o sentimento do “um por todos, todos por um”. Todos envolvidos na tarefa de cuidar de todos, em especial, das crianças e dos velhos. Isto quando havia algum idoso, porque então eles não costumavam viver tanto quanto hoje. Os octogenários eram exceção.
Minha família, com ancestrais fixados em fazendas, foi a primeira a migrar do sertão para o litoral. Tínhamos uma casa sempre cheia, barulhenta, com um fogão que nunca parava de cozinhar as inúmeras refeições que eram preparadas entre muita conversa. Aliás, tudo se fazia em mutirão. A vida doméstica, a vida social, as alegrias das festas e as tristezas dos enterros. Todos sabiam tudo sobre todos. Não havia segredos, não havia nada que escapasse à apreciação de um velado conselho familiar.
A casa mais parecia uma pensão. Aliás, economia colaborativa nasceu ali. Tudo se trocava: tempo, histórias, roupas, livros, comida. Éramos como um clã onde a vida de cada um importava para todos e o esperado era que todos estivessem unidos para desfrutar das alegrias e enfrentar as adversidades. Todos se sentiam responsáveis pelos demais.
Eu cresci neste modelo de família, no entanto, quando chegou minha vez de fazer a minha, na década de 70, o mundo era outro. Minha geração, a dos baby boomers, os sessentões de agora, viu, na vida adulta, esta família se transformar num modelo nuclear, com mãe e pai ( às vezes) e dois filhos, no máximo. A nova família podia se reorganizar em torno de novos casamentos mas nunca voltando a ser um grande clã.
Admitíamos que mesmo sendo poucos, nós nos bastávamos. Éramos jovens e daríamos conta sozinhos dos problemas. Éramos autossuficientes e, por fim, tínhamos conseguido algo inédito até então para as gerações anteriores: privacidade. Fazíamos de tudo, numa vigilância incessante, para manter fora da nossa intimidade parentes, amigos e vizinhos. A privacidade passou a ser um privilégio conquistado.
E agora, quando estamos frente à velhice que atingiu nossos pais e já nos ronda, precisamos entender como vamos cuidar deles e como nossos filhos vão cuidar de nós, neste mundo tão transformado.
Como será cuidar da velhice nestes tempos novos, sem o apoio do qual dispúnhamos na solidez das grandes famílias? Como será manejar a efemeridade e a superficialidade, predominantes nas relações de hoje, para desempenhar o papel de cuidador?
Eu vivi este drama. Na transição deste modelo de família ampliada para a contida, tudo me faltava para ser a filha encarregada de cuidar dos seus idosos. E tive que aprender cuidando à distância. Fui errando e acertando, e descobrindo os mecanismos de recomposição daqueles benefícios da família de antes.
Cuidar de idosos neste novo contexto não é fácil mas é possível. Felizmente, há saídas. É preciso recriar a cultura de apoio ao cuidado com o idoso nos padrões da cooperação de antigamente. Usando as ferramentas desta modernidade e tentando superar as dificuldades antigas com novas abordagens.
Devemos nos inspirar no ditado que diz que é preciso uma vila para criar uma criança. Pois é preciso uma vila para cuidar de um idoso. Melhor dizendo, é preciso uma rede de apoio. O ponto essencial na formação desta rede é a mudança do culto ao individualismo para o apreço ao coletivo, da autonomia solitária, para a colaboração. Temos que aprender a valorizar a ajuda e ser ajudado. Só uma rede será capaz de produzir esta transformação.
Devemos construir nossa “vila” com parentes, vizinhos, amigos, profissionais de saúde, cuidadores profissionais, provedores de serviços e produtos. Uma rede tecida com solidariedade, reaprendendo a compartilhar soluções, a dedicar tempo. Ações apoiadas em colaboração com o objetivo de dar ao idoso que perdeu a autonomia, uma velhice com dignidade. Um jeito novo de cuidar, mais solidário, menos solitário. Devemos atuar num mundo onde a velhice seja acolhida e respeitada. Que idosos possam sensibilizar a sociedade com a mesma força que outros grupos, as crianças, os refugiados, os sem teto, todos tendo em comum uma vulnerabilidade imensa.
Cuidemos dos nossos idosos para inspirarmos a juventude e os governos. Fazê-los entender que a velhice pertence a todos nós.