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Caetano de Pijama

Instagram de Caetano Veloso

Nestes tempos de corona vírus, há fotos e videos que mexem conosco de várias formas. O isolamento e seus desdobramentos, a doença e suas consequências fornecem material abundante que se propaga nas redes sociais para nos emocionar. Já recebi muita coisa mas um video, em especial, me deixou desconcertada. Fui, incompreensivelmente, hipnotizada pela visão de um pijama.  Um daqueles de modelo antigo e fora de moda, há muito, muito tempo. O pijama dominava a cena e deixava em segundo plano quem o vestia.

O pijama exibia, com perfeição, anacrônicos detalhes perdidos nos altos e baixos da moda: tecido de listras brancas sobre fundo azul natiê, debruns brancos fazendo o acabamento das mangas, bolso, gola e abotoamento. Tudo era surpreendentemente antiquado, inclusive as palavras necessárias para descrevê-lo. Uma peça que não habita mais vitrines, com chance de ser encontrado somente nas araras de novelas de época, de alguma emissora de televisão.

O mais estarrecedor é que esse pijama vestia um homem de 77 anos que não se importava, nem um pouco, em parecer ter a idade que tem. Nenhuma preocupação com truques para disfarçar as marcas do tempo. 

No vídeo, o pijama vestia um homem que falava com voz de timbre frágil, cabelos brancos e ralos, uma postura curvada e muitas rugas. O homem no pijama não aparentava o menor desconforto em parecer velho.  Ele se deixava filmar por alguém que o tratava de uma forma que irrita a maioria dos idosos, um jeito de conversa usado com interlocutores suspeitos de acometidos por algum tipo de deficiência cognitiva.

A conversa era o registro de alguém que quer levar o velho de pijama para o mundo dos jovens, convencendo-o a “malhar” (palavra horrível!). O velho desconversa, resiste, entra no jogo da infantilização que a interlocutora, com ares de diretora de documentários, escolhe como tom. Ela fala com o velho como se ele fosse uma criança de 4 anos a quem se pode convencer com argumentos fracos que se for dormir, acordará com um presente ao pé da cama. O velho nem liga e segue o papo. Em seguida, vem a sugestão de que ele devia fazer uma live, marcar presença nos palcos da quarentena. O velho desconversa.

O velho é Caetano Veloso. 

O que significa este video? Por que ele se deixou filmar em sua intimidade? É encenação ou ele está apenas desatento, se deixando levar para este mundo virtual em tempo que ele parece não valorizar? Ou ele e seu pijama pretendem nos sacudir, nos libertar da prisão de estarmos, agora, só falando da pandemia ? Tem algum recado criptografado? Ou a verdade é apenas a constatação de que a velhice o roubou de nós?

Um grande desconforto se instala em todos os que, agora também velhos, um dia conhecemos o velho de pijama no esplendor da sua força criativa. Sentimos uma emoção indescritível. Uma incredulidade que não se conforma que o nosso ídolo possa ter sido agarrado pela decrepitude da senilidade. Uma tristeza profunda de nos vermos num espelho que nos mostra também vestidos com o mesmo pijama, o uniforme de uma velhice que recusamos por várias razões, principalmente, por significar nosso declínio. A visão de um Caetano velho nos rouba o chão.

E aí, ele começa a falar sobre o livro que está lendo. Minutos depois, surge no lugar do velho em seu pijama, o Caetano de sempre. Um homem instigante, cheio de ideias e inspiração. Um ser atemporal, respeitado pelo tempo que passa.

Ele fala sobre uma das roupagens  da letra “R”: o “erre” retroflexo, aquele “R” mordido falado em algumas partes do interior do Brasil, o dito “R”caipira. Um “R” com jeito de velho de pijama. Ele nos conta que um estudioso previu o desaparecimento desta pronúncia. O “R” iria morrer em breve, deixar de ser falado. Mas não, seguiu vivo nas vozes dos cantores sertanejos e no sotaque que dá graça às nossas diferenças. Ao final da sua fala, só conseguimos ver energia e graça.  A maestria de quem veste suas falas com o luxo da genialidade. O pijama some, perde o protagonismo e leva o velho junto.

Valeu a pena ter visto Caetano de pijama. Alguém que emana juventude mesmo vestido com debruns e azul natiê. Quem, como eu, já o viu usando uma saia devia ter lembrado que o artista supera seu figurino.