A intolerância a visões opostas, expressada sem nenhuma cerimônia, nas redes sociais, desembocou no anúncio recente da publicação de “Uma Carta sobre Justiça e Debate Aberto”, assinada por mais de 150 renomados escritores, jornalistas, ativistas. Os signatários alertam para a reiterada prática de uma nova modalidade de censura que está sufocando o debate, reprimindo ideias e matando a liberdade de opinar.
A divergência que antes era tão apreciada por oferecer oportunidades de reflexão, parece não ser mais bem vinda e, agora, assume ares de conflito. Os que veem suas ideias contestadas por opiniões contrárias, se sentem atacados, no campo pessoal. A capacidade de separar a crítica, tem se tornado rara. Reina uma exaltação, um tipo de “pavio-curtismo” que beira a grosseria.
Quem acompanha este comportamento, se estarrece ante a constatação de que aqueles que se sentem atacados por opiniões diferentes das suas, também se sentem autorizados a exercer papéis de censores. Hoje, facilmente, se instala um “tribunal” e julgamentos sumários são realizados. Vigora um gosto por julgar posições opostas que pode acabar condenando ao ostracismo muitos profissionais respeitados. Um pequeno passo fora de um código de conduta estabelecido, não se sabe bem por quem, pode custar a carreira de muita gente.
O episódio recente que bem exemplifica o exercício dessa intransigência, foi vivido por JK Rowling, autora da série de Harry Potter. Uma escritora adorada por milhões de leitores, aplaudida pela crítica e louvada como um caso surpreendente de sucesso, no mundo dos fenômenos literários, viu seus fãs se evaporarem, após ser acusada de complacência com a transfobia. A autora não escapou de um linchamento virtual que a fez sair em defesa do que ela chama de “princípio fundamental de uma sociedade livre: a liberdade de pensar e opinar, num debate aberto, sobre o que se pensa”. A carta foi alvo de desaprovação de outros tantos profissionais da escrita, ainda bem. Viva a controvérsia. Mas o importante é que o debate teve afrouxado o nó que o estrangula.
Os que aprovam o teor da Carta reclamam da reedição da velha patrulha ideológica, que tanto azucrinou vidas, nas décadas passadas. Só que agora ela pode ser potencializada de forma mais avassaladora, dado o contexto de alcance dos atuais meios de comunicação. A Internet, lamentavelmente, pode dar poderes ilegítimos aos aspirantes a censores.
O clima de caça às bruxas faz com que as opiniões sejam reprimidas. Muita gente que conquistou, com talento e esforço, seu espaço de trabalho, põe suas barbas de molho ao ver casos de livros sendo retirados do mercado, jornalistas emudecidos, escritores relegados ao desprezo, editoras reduzidas a pó. São variadas as vítimas das leis desta selva insana em que se transformou o mundo de hoje.
Infelizmente, acontece o mesmo no nosso mundinho de pessoas comuns. O efeito dominó rebate nos círculos informais dos grupos de aplicativos para bate-papo que reúnem gente com algum interesse, parentesco, ou atividade em comum. No início, eles eram oportunidades fantásticas de reencontro. Amigos e familiares afastados, geograficamente, ali puderam retomar seus laços. Em grupos de trabalho, muita coisa pôde ser discutida e aprendida. Havia uma dinâmica de se trazer novidades, compartilhar conhecimentos e novidades, propor discussões. Havia senso de humor, ironia e risadas. Era possível aprender com os discordantes e mudar de opinião. Durante um tempo, foi ótimo.
Até que muitos se infectaram com o vírus da conformidade ideológica, com a praga das certezas de que seu receituário moral era inegociável, com a febre da arrogância dos falsos sábios. Os que não pensam como esses devem ser convencidos ou exterminados. Pessoas afáveis se transformaram em ferozes contendores, amigos delicados perderam a educação em defesa de causas políticas. Vozes interessantes se calaram com medo das pedradas dos medíocres convencidos da sua proficiência e certos da sua autoridade em pautar o que pode ou não ser abordado.
A partir daí, morreram as conversas, a admiração, o respeito, as amizades. Os grupos servem apenas para os alegres memes motivacionais, textos de auto ajuda, para fotos que registram sucesso e felicidade. Os bons são separados dos maus, segundo sua opção religiosa, política e outras mais. Quem se atreve a discordar só pode contar com uma brutal agressividade que cala qualquer tentativa de discussão consistente. Os grupos viraram agremiações, onde só fala e é escutado quem pensa igual. Aos demais, resta a impressão de que um “bug” no aplicativo faz com que suas postagens não sejam lidas. O famoso gelo das conversas presenciais transportado para o mundo virtual.
Que algum movimento ressuscite, nos grupos que frequentamos, o gosto pelo debate aberto, franco, tolerante; com a predominância da humildade dos que sabem que não sabem tudo sobre qualquer coisa.
Publicado no jornal A UNIÃO de João Pessoa – PB, em 11 de julho de 2020