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O castigo de escrever

Fonte: i.kym.com

Escreva 200 vezes “Não devo me comportar mal”, dizia a caligrafia irretocável, na nota registrando a punição que meus pais deviam ter conhecimento. A letra não deixava dúvida quanto à dureza da alma da sua dona.

Eu tinha 10 anos. Saí da sala com bochechas vermelhas de vergonha, garganta seca de raiva pela injustiça sofrida e coração acelerado pela preocupação de ter que fazer meu pai pagar um caderno, com esse castigo. Eu não merecia ser punida por ter respondido, à colega do lado, o resultado mais difícil da tabuada de 9. Isso era amizade, não mau comportamento. E meu pai não merecia gastar seu parco salário com papéis para eu escrever inutilidades.

Era comum, nos idos da década de 60, as freiras fazerem isso. Abandonaram as palmatórias e se sentiam muito generosas aplicando punições, como essa, que julgavam leves. Eu voltava para casa no transporte escolar do colégio, num trajeto que devia ser feito em absoluto silêncio e imobilidade.

Eu via as meninas de variadas turmas, com quem não podia conversar e, por isso, não sabia seus nomes. Mas sabia que no primeiro banco sempre estava aquela de olhos azuis “não devo ficar em pé com o ônibus em movimento – 100 vezes”. A lourinha chorosa “não devo vir ao colégio com blusa amarrotada – 150 vezes”. E uma bem chatinha de tranças “não devo botar a cabeça para fora da janela – 300 vezes”. Eu sentava sempre junto da freira encarregada de hipnotizar as 60 crianças com seu olhar aterrorizador, cheio de promessas de mais penitências, e pensava como eu gostaria de passar para ela um dever de casa “Não devo me vestir com roupa de santa quando na verdade sou um satanás de saia -1500 vezes”.

Depois desse dia que reputo o de maior humilhação vivida por mim, nunca mais aceitei fazer as redações exigidas. Esse maldito dia só perde para aquele quando, aos 12 anos de idade, ouvi do menino mais feio da vizinhança, um não como resposta ao meu pedido de namoro. Fui excelente aluna, tirava nota 10 em tudo e zero em Composição e Escrita. A média me salvava e empurrava para os anos seguintes.

Eu ouvia a professora escrevendo no quadro o tema da redação e, imediatamente, começava a mentalizar o que nunca iria para o papel pautado. Lá, dentro da minha cabeça, eu escrevia super bem, como mandavam as boas normas, com fluência e estilo. Apagava, corrigia, encaixava sinônimos bonitos. Caprichava nos textos, sempre deixando-os lindos e me desculpava por não deixá-los sair da prisão.

Sei que minhas redações eram lindas porque minha boa memória tratava de decorá-las e assim que eu chegava em casa, repetia para a minha avó. Ela também fazia ótimas redações, num caderno que escondia do meu avô. Eu esperava ouvir seu ronco e toda noite lia suas redações, sempre feitas para um tal de querido diário. Era isso o que meu avô não podia saber, desse namorado da sua mulher.

Minha avó sempre aplaudia meu monólogo, sem nunca recriminar minha recusa a escrever. Mas também sem nunca perguntar o porquê disso. Dias depois do lançamento do meu terceiro livro, me dei conta que era preciso pedir que ela me desvendasse esse mistério. Quando lembrei de perguntar o porquê da sua não-pergunta, já era tarde demais. Um AVC chegou antes de mim e nunca mais minha avó pôde conversar comigo.

Restava ainda inquirir as freiras, as ditas mestras de classe. Por que educadoras fazem seus educandos pensarem que escrever é um castigo? Por que nunca se interessaram em saber as causas de uma rebeldia?

Alguns estranham que eu dedique meus livros a elas, pessoas de quem devia guardar mágoas. Mas sei que acabou sendo bom ter represado tantas frases e esperado para escrevê-las depois de ter lavado minha alma com sofrimentos e injustiças maiores. Para mim, o castigo maior não foi escrever aquelas revoltantes linhas de confissão de um crime não cometido. O pior mesmo, nos meus tempos de criança, foi não poder fazer como minha avó e todo dia contar, a um amor misterioso, as alegrias e tristezas dos meus dias.

Nota válida para todos os textos: nem sempre o que conto foi vivido. Uso e abuso do direito de fantasiar e inventar histórias.