Vivendo, contando e inventando histórias

Uncategorized

Estabanada

pt.vecteezy.com

Sacudo minha mão, com toda leveza e a lente de contato que estava na ponta do dedo foi parar em local ignorado. Sei que deve estar por perto mas sua transparência faz impossível localizá-la. Arrisco que pode ter grudado na porta, saio tateando e vem a decepção, não era nada. Este é o momento em que bate a vontade de me bater. Um pequeno desastre que se repete há anos, a despeito da minha promessa de que nunca mais vai acontecer.

Corro para comprar as substitutas e tropeço no fio da extensão que acomoda as tomadas do notebook, TV e máquina de café. Penso na metáfora da caneca meio cheia e me reconheço. Meu otimismo acha que o computador vai resistir ao tsunami da cafeína. Não resistiu. Vou comprar pelo celular.

Respiro fundo, me acomodo na cadeira, levanto com coluna ereta e “crecs”, um estalido me gela a alma. O celular caiu de cara no chão e a tela virou um imenso asterisco que zomba do meu mau jeito e me impede de ver a agenda. Ainda bem que não fiquei com torcicolo ao me abaixar para socorrer o coitado. Epa, a coitada aqui, sou eu.

Com olhos marejados, lembro que esqueci os óculos no escritório e penso por que estou sempre esquecendo de lembrar. Remoo a situação inaceitável em que me encontro: cega e sem perdão para tanto estabanamento.

Esqueci da cegueira, por um momento, e vi minha mãe reclamando. “Menina, vou te matricular num curso de gueixas para ver se um milagre cultural deixa teus movimentos elegantes”. A calma inabalável da minha mãe não tinha momentos de folga com meu desmantelo.

Sou estabanada, desastrada, desatenta, desde sempre. Mas não sou daquelas conformadas com a tragédia. Sofro, me irrito com as consequências, busco ajuda. Já fiz terapia comportamental, fui a pai-de-santo, subi escadarias de santuários nos quatro cantos do mundo. Onde, aliás, também já deixei passaporte, malas, compras imperdíveis. Fiz promessa antecipada à Santa Rita, a das causa impossíveis, em Cassia, na Perugia. E nada aconteceu. Penso que o juramento de voltar à cidade, a cada dois anos, não foi considerada um sacrifício e a santa me ignorou. Pressentiu que o famoso chocolate , e não o compromisso, era o verdadeiro motivo a me fazer voltar à sua igreja .

O fato é que perco e esqueço coisas como se seguisse ordens demoníacas. Nos ínterins, derramo copos d’água, dou cotoveladas nos pratos dos meus vizinho de mesa, gasto o dobro da gasolina errando caminhos. Tenho trios de roupas de mesmo modelo e cor porque, a cada encontro numa vitrine, penso que é primeira vez que gostei da peça. Perco amizades, tempo e dinheiro. Quem me acompanha se diverte, eu só sofro.

Desconfio que meus pais aceitaram participar de algum experimento de manipulação genética e toparam ter uma filha cobaia. Fui feita para a ciência observar e entender como alguém tão distraído e destrambelhado sobrevive à vida em sociedade.