Desentranhado da crônica Viúva na praia, de Rubem Braga ( Rio, setembro, 1958)
Tivemos que matar meu pai quando ele nos deixou por outra mulher e foi morar não soubemos onde. Deixou um bilhete onde dizia apenas que não podia mais. Só isso e uma assinatura sem beijos, numa caligrafia esquecida de mim.
Minha mãe me explicou que nos mudaríamos também. Para a capital, levando uma nova história. Eu órfão, ela viúva.
Ouvi, petrificado, a crueldade do preconceito que ia roubar meu jeito de viver. Ela, fingindo não ligar, me contou que uma mulher largada do marido não teria nunca mais o respeito da sociedade.
Que os padres do colégio inventariam notas baixas para convencê-la a me tirar do nobre educandário. Logo eu, o menino com um boletim coalhado de 10.
Não seríamos mais convidados para nenhuma festa. Os velhos amigos iriam ser os novos ex-amigos.
Nunca mais eu iria ser anjinho da procissão, na festa da padroeira. Ia perder meu lugar de destaque no jeep, à frente do andor. Minhas asinhas coladas nas costas não balançariam mais ao vento da minha ingênua fé.
Jamais o prefeito deixaria que eu recitasse, no coreto da praça, as poesias que as fadas me segredavam.
Até as teclas do amado piano de Dona Mariquinha iriam me abandonar. Ela não dava aula a filho de mulher rejeitada por ter, certamente, feito algo de errado.
Tudo escutado e nada entendido, caí nos meus devaneios de sempre. Meu pai não gostava deles mas minha avó, essa sim defunta à vera, adorava. “Sonhe muito, meu menino, você tem o dom de dar às palavras vozes de estrelas”.
Com a surpresa de que iríamos viver perto do mar, veio o cheiro da maresia, levando a saudade doída. Meu coração, antes fel, agora era sol. Podia ver minha mãe, mais linda que nunca, me levando pela mão para furar as ondas mansas e receber do mar a graça da orfandade. Seus cabelos soltos e um maiô negro de luto, apertando sua cintura num abraço, me deixavam no céu.
Já me via na praia, nossas esperanças encontrando o sorriso de um homem, sentado na areia, cigarro entre os dedos. Ele viu a viúva e reconheceu seu amor. Sentiu pena do falecido marido, lá no além, triste com a precoce alegria da mulher, enciumado dos olhares ávidos que a tocavam. Mas ele não era o finado, ora bolas, e fez saber à minha solidão que seu fim havia chegado.
O bom dos falsos mortos é que não precisam de réquiem. Deixamos a cidade hostil, antes do sétimo dia. Pelo canto do olho vi que minha mãe chorava, sem suspeitar do encontro com alguém que só a deixaria quando morto de verdade.
Eu, o filho da viúva, olhei pela janela do carro e escolhi a nuvem mais bonita para esculpir a súbita vida.
Desentranhada da crônica Viúva na praia, de Rubem Braga ( Rio, setembro, 1958)