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Estranha Ideia

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A cada vez que escrevo vôo e preciso eliminar o circunflexo, me revolto. Para que isso, mesmo?

O editor de textos me corrige e aumenta minha antipatia por reformas e acordos ortográficos. Esta implicância pode ter começado, em 1971, quando eu, em véspera de prestar o exame vestibular, tive que dar um refresh no meu Português, já nos trinques para gabaritar a prova. Refresh entra aqui por rebeldia. A lei me obriga a omitir acentos mas não me proíbe de usar estrangeirismo. Que eu não seja apedrejada por quem aportuguesa tudo, querendo blindar nossa língua de influências de outra. Não sou contra. Não implico com quem escreve “Rainha Isabel” em vez de “Rainha Elizabeth”. Ou “fêicebuque” em vez de “facebook”. Só embirro com quem traduz ao pé da letra “at the end of the day”. “No fim do dia, sou a responsável por tudo”, não, por favor. Tente algo como “no fim das contas”.

Não sou resistente à mudança, nem apegada à fantasia de que no passado tudo era melhor. Envelheci mas não parei no tempo. Também entendo que legislar sobre escrita é uma questão de poder. Os reformistas alegam, entre outras coisas, que o principal efeito é dar maior prestígio social (??) à língua. A premissa é discutível mas sendo assim, porque não fazê-lo usando o senso comum e observando o dinamismo dela?

Nunca superei a extinção do trema, a morte de alguns acentos, não entubei os novos papeis do hífen. Em vez de matar acentuações, poderiam ter exterminado as exceções.

Sei que informação é poder. Aprendi que a linguagem não apenas descreve a realidade, ela a gera, antes de tudo. E quem domina seus códigos, constrói o mundo.

Mas meu incômodo é muito mais simplezinho. Custava deixar “idéia” com seu acento? A troco de que se permite que os corretores joguem na nossa tela suas odiosas cobrinhas vermelhas, sublinhando nosso desrespeito ou desconhecimento? Não dava para ser como no Alemão? Li que, em 1996, foi firmado um acordo fazendo a reforma ortográfica ser obrigatória apenas nas escolas. Fora delas, qualquer cidadão é livre para escrever como quiser. Liberdade também é poder, eis o ponto.

Sou capacitada para discordar? Claro que não. Mas, igual a muitos, quero dar pitacos em temas como física quântica, direito romano, geopolítica. A vontade de opinar pode ser inversamente proporcional ao domínio do assunto.

Vejo, todo dia, meterem o bedelho em algoritmos, assunto que me acompanha há quase 50 anos. Leio e me calo.

Por que então não posso achar que esses acordos ortográficos confundem mais que simplificam? Eles desprezam a rapidez com que o mundo muda. Ignoram a existência de uma categoria nova: a dos não analfabetos disfuncionais. Gente alfabetizada, com domínio da norma culta, mas incapaz de entender as novas linguagens do mundo virtual, os dialetos que ali nascem e morrem em meses, os novos alfabetos, os ideogramas (ou seriam emojis?).

Saber usar hífens e detonar acentos não vai bastar para entender os jovens.

Publicado no jornal A UNIÃO de João Pessoa – PB, em 31 de outubro de 2020