Vivendo, contando e inventando histórias

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A Pressa das Feias

Somos uma família de mulheres feias, há muitas gerações, por isso tenho pressa.

Não sei a quem culpar mas especulo que a endogamia, como medida de preservação das terras secas do sertão de onde somos, deve ter feito um estrago no nosso DNA. Tão irreparável que eu, sendo filha de um sósia do Alain Delon, só puxei à minha bisavó, fusão da Rainha Vitória com Noel Rosa. Um desmantelo grande.

Em reuniões familiares, ao nos revermos, não nos cumprimentamos, só nos assustamos. “Eita! Você tá o cão chupando manga com esse cabelo”. “Nem adiantou emagrecer, piorou que só”. “Se o bicho que come gente feia passar aqui vai se sentir num banquete”. Desdém que rende muitas risadas. Cruel? Assim tratamos nossa feiura ancestral: sem o benefício da hipocrisia, sem anestesia.

Deixei de rir do deboche quando me apaixonei pela primeira vez e desejei, ardentemente, ser linda. Meu espelho urgia mudanças que penteados e maquiagem não conseguiam produzir. As imagens matavam a esperança. Sequei as lágrimas porque olhos inchados não me caíam bem. Que horrendo uma feia infeliz.

A tradição familiar socorreu meu desespero.

Minha bisavó Lia presenteou o mundo com o conceito da unidade de feiúra: um ser humano podia ter, no máximo, 1 lia de feiúra; passando disso já se qualificava como monstro. Foi ela quem teve a epifania de que a feiura era para ser driblada, não combatida.

Escreveu o inusitado Livro das Mulheres Feias, presenteando as filhas com recomendação prefaciada de que a leitura era obrigatória para as futuras gerações. A desobediência seria punida com a perda da herança. Sim, somos ricas. Deus, misericordioso, compensou os olhos opacos, as bocas sem conserto de sorrisos e os corpos sem o auxílio de curvas e volumes, com um patrimônio que não conhece fim.

D. Lia o que tinha de medonha, tinha de esperta. Não perdeu tempo invejando a imerecida sorte das belas, focou em saber conquistar homens, amizades e empregos. Seus pontos: “O inimigo da feiura não é a beleza mas sim o tempo. A fealdade exige pressa. Dinheiro não cura feiura”. Dividiu práticas. “Feia fogosa, alegre e culta ganha qualquer parada”. Cutucou muito. “Aviem-se, o tempo não é aliado e dá fim a esses afrodisíacos”.

Obedeci e me gabo de ter tido os amores que quis, quantas vezes me apeteceu. Sou exemplo de baranga que converteu desvantagem genética em empoderamento, com perdão da má palavra. Bonita nunca fiquei, triste só aquela vez.

A bisa alertava: Aviem-se! Beleza com o tempo acaba mas a feiura, com o tempo, aumenta.

Por isso, tenho pressa.

Nota válida para todos os textos: nem sempre o que conto foi vivido. Uso e abuso do direito de fantasiar e inventar histórias.