Vivendo, contando e inventando histórias

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Retrato de família

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Deixo meus sapatos ao lado da porta, aderindo à moda oriental. Olho distraída para o tapete onde descansam outros pares e clique! No chão, vejo um álbum de família. Como é que eu nunca tinha notado como os sapatos se parecem com seus donos?

Descalça, examino um surrado par de mocassins desordenados, solas gastas, denunciando o andar de passos fortes e barulhentos do meu marido. Não é para confundir a firmeza dessas pisadas com dureza de alma. Poucos têm a doçura desse homem mas é impossível pisar macio sendo tão alto e tendo aqueles pés de numeração exagerada. A suavidade subtraída ao caminhar migrou para as mãos e para o olhar. Seus sapatos são sempre pretos, para combinar com todas as suas roupas. Usa sempre um mesmo par e segue com ele até que a morte do coitado os separe. Aos amigos e amores, dedica a mesma fidelidade. Olho mais uma vez para os mocassins que jamais lhe compraria e penso como são a cara do meu marido: puro conforto e aconchego.

Já as sandálias de plataforma alta, super coloridas, com desenho ousado, uma tirinha partida, dizem tudo sobre minha exuberante filha. Uma moça segura de si, sem uma gota da minha timidez, ainda bem. Estão ali seus inquietos 22 anos e a sede de botar o corpo miúdo, bem nas alturas, junto dos sonhos. E muita rebeldia, essa sim, herdada de mim. Toda noite, depois que minha menina adormece, apago a luz do seu abajur e arrumo a bagunça. Há vezes em que tenho que despi-la das malditas sandálias de extravagante mau gosto. Há vezes, em que ganho um sorriso sonolento em troca do meu beijo pousado em sua testa. Com o coração mole, penso que mal eu fiz para ter uma filha que se deita sem tirar os sapatos. No entanto, desconfio que viverei para vê-la em escarpins negros e saia justa.

Meu impetuoso filho de 18 anos, deixa nos tênis sujos e furados um recado.Vai lutar até a morte contra esse sistema maluco que faz pessoas bacanas como eu, perderem a noção dos valores e colecionarem sapatos. “Que vergonha, mãe!” Uma camiseta encardida, sem marca e com alguns furos, de vez em quando fica ali do lado, indiferente ao chulé, formando fileira na guerra do seu dono contra o capitalismo. Mas algo me diz, a julgar por suas namoradas, que ainda verei nesse tapete, um belo par de legítimo cromo alemão.

Acomodo minhas sapatilhas, entre seus parentes, e sou só carinho. Amanhã, não sei o que minha sapateira vai sugerir para calçar minhas fantasias mas estarei, outra vez, cheia de alegria compondo mais uma foto do meu álbum de família. 

Narrador: Eu Lírico 🙂

Nota válida para todos os textos: nem sempre o que conto foi vivido. Uso e abuso do direito de fantasiar e inventar histórias.