Vivendo, contando e inventando histórias

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O sertanejo é antes de tudo um libanês

Assim me garantia um amigo que havia morado no país dos cedros, ao ouvir as histórias da minha família sertaneja. Décadas depois, entendi o sentido.

Por muito tempo, pensei ser a pessoa de mente mais aberta sobre a face da terra. Assim somos nós, os provincianos.

Cresci no combo classe média + colégio-só-para-meninas+ cidade pequena do nordeste brasileiro, na época em que o Brasil queria suas portas fechadas, por razões econômicas e políticas. A Internet só chegaria 30 anos depois para nos mostrar o mundo lá fora. Viagens eram artigos de luxo. Livros e filmes não abundavam. Quem tivesse amigos bem informados que os tratasse como ouro. Era outro jeito de aprender e se informar. O fato é que “coisas” de outros países eram raras entre nós. Estrangeiros mais ainda. Escutar alguém falando uma língua de outras terras, só em sala de aula, nunca nas calçadas. Uma vida sem diversidade.

Pensava ser imune a pré julgamentos e conceitos até entrar na minha vida um libanês. Na minha cidade, não havia nem esfiha que dirá libaneses ao vivo e a cores. Gente com cheiro bom de tahine, doçura de tâmaras, cuscuz sem ser de milho e gosto por carne de carneiro. O Líbano era um lugar na minha estante de criança, dentro do Tesouro da Juventude, com tapetes voadores e homens com barba, turbantes e roupas estranhas. Fiquei adulta fazendo uma confusão ignorante entre sírios, turcos e libaneses. Com um desconhecimento despreocupado sobre sua cultura, gastronomia, geografia e religião. Que lástima.

Um belo dia soube que ia ter um cossogro libanês. Gostei da novidade de kafta, babaganoush e outras iguarias serem parte de futuros almoços de família. Adorei a ideia de ir a Beirute, a Paris do Oriente, e ficar na casa de uma nova família. Nordestina raiz adora casa da família. 

Acordei dos devaneios ao saber que o novo parente era muçulmano. O desconcerto me pegou. Minha ignorância só sabia dos estereótipos medíocres: mulheres cobertas com véus, por vontade dos outros; práticas religiosas estritas, gente fechada. Nunca tendo conhecido ninguém de lá, nada sabia sobre a história libanesa nem sobre as tantas religiões que lá convivem. 

Faltava aprender muito para abrir e melhorar a mente. Mas desconhecer não me fez preconceituosa. Não recusei o diferente e só ganhei. Genro, tias, cunhadas e primos que são a cara do meu povo do sertão. Semelhanças físicas, gosto por agradar com comida, zelo pela família, alegria e aconchego. Cangote firme e boa teimosia, para enfrentar adversidades. O libanês é uma espécie de sertanejo. Ou o contrário.

Desatenta, nem me dava conta da ginástica que devia estar fazendo o libanês, agora avô ( “Jido”, na sua sonora língua) do meu neto, para acomodar no seu coração a sogra do seu filho, alguém meio feminista, de costumes irreverentes e idéias um tanto controvertidas. Só pensei nisso quando nossa tolerância já tinha deixado construir os laços de amizade.

Vejo as imagens de Beirute, sob a tragédia da explosão, e me sinto um pouco libanesa. Triste e inconformada.