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A Dama das Bolinhas

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Não entendo muito de arte mas sou curiosa e acho que cada um pode achar seu jeito de se deixar tocar por ela. Nesse universo de técnicas, materiais e estilos, nem sempre ao alcance da compreensão de  pobres mortais, já tive experiências bem frustrantes. De frente a quadros famosos, me senti incapaz de traduzir a mensagem e era tomada de um desagradável sentimento de ignorância. Mas nunca me deixei abater e ia sempre em busca de obras que me proporcionassem emoções sem necessitar da razão.

A arte é para todos, sempre acreditei.  Vou a museus e deixo que as peças me fisguem. As cores, luzes, sombras, traços e cinzeladas são as responsáveis pela atração. Uma vez seduzida, saio imediatamente bisbilhotando a vida do autor. Sou do tipo que precisa saber da vida dos artistas para apreciar sua obra. Preciso criar uma conexão, ter a minha imagem do artista. Conhecer a história de vida do artista me permite ver sua obra com outros olhos. Sou dessas.

Tenho queda por artistas atormentados, com vida trágica, com histórias fortes, improváveis. Com personalidades controvertidas, com desequilíbrio entre talento e caráter. Vou sabendo da pessoa e vou montando uma espécie de filme do quadro, com uma história servindo de legenda.

A obra de Yayoy Kusama me encantou à primeira vista e sua história me fascinou mais ainda.

Japonesa, nascida em março de 1929 ( passando dos noventa, enquanto escrevo ), numa abastada família ultra conservadora de uma cidade pequena, teve a infância marcada por um relacionamento complicado com a mãe que não aceitava seu gosto por pintar. Yayoy, desde muito cedo, tinha alucinações e delírios. Este conturbado estado mental resultava numa necessidade de expressar seus transtornos em quadros, repletos de bolinhas. Se já era difícil aceitar um filha fora dos padrões, que anunciava não poder se enquadrar nas aspirações familiares de uma vida sensata dentro de um casamento seguro, imagine entender que seus quadros fossem arte. Sua mãe os rasgava e os considerava resultado dos frequentes surtos que acometiam Yayoy. Aos trancos e barrancos, entre a falta de apoio dos pais e uma esquizofrenia ainda não compreendida, ela foi se tornando artista. Numa época e país onde não era aceitável que as mulheres tivessem aspirações profissionais, ela abriu seu caminho, à custa de muita dor.

Foi para Nova York, na década de 60, uma jovem nos seus trinta anos e lá iniciou uma carreira, obtendo muito reconhecimento mas sofrendo muitas adversidades. Seu transtorno mental foi aumentando sua fragilidade emocional e a impossibilitou de superar experiências traumáticas como roubo e plágio de suas obras, por parte de artistas oportunistas. Depois de algumas tentativas de suicídio e alguma compreensão do seu transtorno, voltou ao Japão.  E, por vontade própria, foi viver num hospital psiquiátrico, onde mora até hoje. Fez seu ateliê do outro lado da rua e durante décadas trabalhou exaustivamente, sem ser conhecida no seu país. Foi redescoberta, no final da década de 80. Sua obra conquistou as mais famosas galerias e museus e, hoje, ela é a artista de vanguarda mais vendida do mundo. Foi a primeira mulher a representar o Japão na bienal de Veneza. Ganhou honrarias do Império.

Saber da história de Yayoy, do seu contexto familiar, da sua condição mental, faz com que seus quadros, um espetáculo por si só, nos pareçam mais fantásticos ainda. Sua loucura, ou qualquer que seja o nome que se dê, faz com que quem estiver diante de uma peça de sua autoria seja impactado por muitas emoções.

Quando se vê a extensão da obra de Yayoy – ela ainda mantém uma rotina diária de trabalho durante noites insones e dias de muitas horas – e sua atitude frente a um estado mental que deixaria qualquer um fora de combate, só sente crescer a admiração pela força do seu trabalho. É impossível olhar suas telas, esculturas e instalações, imensas também em tamanho físico, e não se perguntar quem é esta pessoa, que sentimentos tão complexos forjam seu talento. A mulher é uma explosão de liberdade. É um engano pensar que é a loucura o que proporciona o vigor criativo. Segundo ela mesma, é preciso não se deixar levar pelo desvario mas usá-lo para “abrir caminhos para a criatividade”.

As bolinhas são as vogais da narrativa que imprime em todas as suas peças.  Há bolinhas em tudo e para tudo.  O que podia facilmente ser monotemático é maravilhosamente renovável em cada trabalho. Ela é louca por bolinhas, abóboras, flores gigantes, espelhos infinitos. É magistral o que consegue fazer com sua louca paixão.