Vivendo, contando e inventando histórias

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Bodas de nada

viuva

sem fins comerciais, da canstock

Cadê o assunto? Estou aqui comemorando 22 anos de casamento, num restaurante fino, mesa com vista para o Vesúvio, diante da mulher a quem ainda devia desejar, tomando um vinho que faria até um mudo falar e cadê assunto? 

Olho de soslaio para o inseparável celular e peço uma tábua de salvação virtual. Digito, furtivamente: “22 anos, Bodas de ”. Bodas de Louça, seu babaca. Putz, daí não vai sair nenhum papo que preste. Já me veio à cabeça a cena da linda louça Limoges, presente de casamento da minha mãe (tá, ela deu uma das 4 que tinha ganho pelo mesmo motivo), espatifada na parede, pela minha mulher, num justo acesso de raiva pela sogra que nem Jesus suportaria sem pecar.

Epa, perdi o foco. Melhor pensar no presente, preciso falar alguma coisa, já. É muito suspeito ficar com olhar perdido sobre a imensidão turquesa que banha a ilha de Capri e não ter papo. Num nanosegundo, minha mulher pode evoluir para a certeza de que estou pensando no meu novo caso.

Ensaio falar que não sabia que torta caprese era um doce local mas desisto, antevendo o olhar frio que atesta sua indignação com minhas pequenas ignorâncias. Amor que perde a validade perde o gosto pelo perdão. Até eu me espanto com tanta distração: caprese é o gentílico dessa ilha do amor. E aqui tudo pode ser caprese, das pessoas, às saladas e às tortas. Arrisco dizer isto? Melhor, não.

Planejei com cuidado esta viagem. Montei uma surpresa para valer como prova de amor. Não importa que eu já não a ame mais. A verdade serve pouco quando o objetivo é ser grato por um passado tão bom. Eu sei mentir, só não sei bancar o romântico conversador.

Tudo no capricho: voo em primeira classe, quarto num hotel exclusivo, com vista para a baía. Um anel comprado na Via Camerelle, deixado na cama como um mimo, ganhou dela um sorriso que há anos não frequentava meu olhar.

Já ao decolar, começou meu blackout conversacional, aumentado só em pensar como seriam os 3 dias vindouros. Nunca havíamos feito uma viagem só nos dois. Três filhos, uma empresa que começou do nada e acabou com dezenas de filiais. Fomos adiando.

Agora estou aqui diante de um bloqueio maior do que aqueles nas provas de Mecânica dos Fluidos. Ah, posso comentar a falência do meu ex-sócio. Xi, que ideia baixo astral.

Veio o jantar e eu pensando “se fosse bodas de 27 anos. 27 noves fora, nada. Nada. Nada.” Que maluquice. Ainda bem que ela não lê pensamento. 

E tome silêncio de entrada, prato principal e sobremesa. 300 euros de silêncio. Não, este tema leva a briga. Sugeri um drinque na Piazzeta, apostando que outro cenário poderia me trazer inspiração. Talvez a noite passeando na ilha me trouxesse as ansiadas palavras. Nada. Meu desamor desativou a inspiração.

Não rolou sequer uma frase digna de uma segunda, quem sabe última, lua de mel. 

Bebi como nunca, agoniado pelo vazio instalado entre nós. Voltamos para o hotel, passei mal e vomitei até o anjo da guarda. Desmaiei silente e ausente. 

Foi assim, dia após dia. Refeições deliciosas, paisagens deslumbrantes, compras ótimas, conversas inexistentes. Se eu tivesse ido para aqueles retiros onde falar é proibido, teria me saído super bem.

Nota válida para todos os textos: Uso e abuso do direito de fantasiar e inventar histórias.